As mulheres e o crime: entre o visível e o invisível na realidade da América Latina

A partir das contribuições das epistemologias feministas, um giro teórico tem sido produzido para que os estudos sobre Política Criminal considerem aspectos específicos da realidade de ser mulher em nossas sociedades

por Renata Monteiro García

Por Renata Monteiro Garcia

@regarciapsi

A escolha pelo título deste texto se dá por algumas razões: a principal delas é compreender que as relações entre mulheres e crimes permanecem num limiar muito tênue entre o que está diante dos nossos olhos e aquilo que ainda não queremos, ou não podemos compreender. Afinal, os estudos que se debruçam sobre mulheres autoras de crimes são escassos e necessitam de abordagens mais aprofundadas, de estudos comparativos, de pesquisas de campo e, claro, de maior investimento para que estas pesquisas aconteçam.

Historicamente, as perspectivas teóricas nos estudos criminológicos não incluíram as mulheres como sujeito a ser considerado, ou quando o eram, figuravam como anomalias. Nas escolas tradicionais de Criminologia e, mais atualmente, na emergência da Criminologia Crítica, o homem foi tomado como sujeito universal e as compreensões sobre o crime enquanto construção social e os processos de criminalização enquanto produções políticas-econômicas-sociais, estiveram centradas neste sujeito, não considerando perspectivas de gênero. 

A partir das contribuições das epistemologias feministas, um giro teórico tem sido produzido para que os estudos sobre Política Criminal considerem aspectos específicos da realidade de ser mulher em nossas sociedades. Afinal, não é mais possível deixar invisíveis os números produzidos por relatórios internacionais que apontam o aumento expressivo de mulheres nas prisões, especialmente, na América Latina. E o que teriam esses números a nos dizer?

No mundo, estima-se que a população de mulheres privadas de liberdade represente cerca de 7%, do total de pessoas presas. Este percentual parece pequeno, entretanto, se visualizarmos a taxa de crescimento de pessoas presas, desde o ano de 2000, verifica-se que há um crescimento de 19,6%, enquanto o crescimento de mulheres encarceradas, nesse mesmo período, representa 53,3%. No Brasil, este número é alarmante: entre os anos de 2000 e 2016, a população de mulheres encarceradas cresceu 656%; neste mesmo período enquanto a taxa de encarceramento foi de 158%, a taxa de aprisionamento feminino cresceu 525%. A dimensão deste aumento significativo da prisão de mulheres não pode passar desapercebido de uma análise aprofundada do que está acontecendo em nossa realidade, especialmente porque esses números alarmantes encontram uma significativa representação nos países da América Latina e do Caribe. 

Em nosso continente, é importante destacar que a população de mulheres presas atinge a porcentagem de 8,4%, da população total de pessoas presas, bem acima da média mundial. Além disso, o Brasil e o México estão entre os dez países que mais aprisionam mulheres no mundo.  As estatísticas que comparecem em outros relatórios também nos alertam tanto da superlotação dos presídios, quanto das graves violações de direitos humanos sofridas nestas instituições, o que também não deve ser invisibilizado, haja visto que a violência que se sobrepõe às mulheres ali, também possui especificidades de gênero.

Cientes de que este pequeno ensaio não poderá aprofundar o debate sobre o tema, pretendemos lançar algumas questões pertinentes para possíveis análises. Importa tornar visível, não somente a mulher como sujeito que comete crimes, mas também os processos de criminalização que recaem sobre este grupo. Assim, compreender quais mulheres a política criminal alcança através do sistema penal; sobre quais crimes este sistema está interessado em punir e de que maneira as mulheres que estão presas se envolvem nos crimes pelos quais são punidas. É possível pensar outra política criminal ou outras políticas públicas que possibilitem que mulheres não se envolvam com o crime e, mais além, que não sejam criminalizadas? 

Parece-nos muito pertinente que tanto elementos trazidos pelos números sobre prisão de mulheres, quanto contribuições teóricas no campo da Criminologia Feminista, sejam utilizados como bússolas para nos situarmos na montagem dessas possíveis respostas. Ainda no universo das estatísticas, é muito significativo verificar que a primeira ou segunda principal causa da prisão de mulheres na América Latina e no Caribe esteja ligada à implementação de políticas de drogas pautadas num sistema punitivo que utiliza a prisão como sua principal estratégia de intervenção. Em países como Brasil, Panamá e Costa Rica, por exemplo, mais da metade das prisões de mulheres estão ligadas aos crimes de drogas.

Nesse cenário, o perfil das mulheres presas no nosso continente também possui características em comum: na sua maioria são jovens, pobres, negras ou indígenas, pouco escolarizadas, e chefes de família. No que diz respeito ao seu envolvimento com delitos, ocupavam funções subalternas e vulneráveis, portanto, todas estas configurações as colocam mais próximas do braço penal do Estado.

Tais dados vão ao encontro de um processo denominado feminização da pobreza: a compreensão de que a pobreza afeta a homens e mulheres de maneiras diferentes. Isto quer dizer que a desigualdade social, presente em nossa realidade, precisa ser pensada com perspectiva de gênero. As desigualdades de gênero provocam diferentes modos de acesso ao trabalho, à renda, às políticas públicas e também impactam na vida cotidiana, já que as mulheres acabam por serem responsabilizadas pelos cuidados com o lar e com as pessoas da família, como crianças e idosos. Recai sobre elas o cuidado afetivo, material e financeiro de suas famílias.

O entrecruzamento destas informações, já presentes e discutidas em diversas investigações científicas, colaboram para a compreensão do cenário de inserção de mulheres no mercado de drogas ilícitas. Não há apenas uma causa que explique porque elas adentram nas atividades ilegais. Devem ser consideradas diferentes dinâmicas presentes em suas vidas, elementos que rodeiam sua realidade e os interesses desses mercados na utilização destas pessoas na sua dinâmica.

Entretanto, é preciso considerar que a rede de possibilidades que enseja a escolha por estes caminhos, geralmente, está marcada por trajetórias de opressão, violência, necessidade econômica, a proximidade com pessoas ou territórios em que a atividade ilícita se desenvolve. Por outro lado, o trabalho oferecido permite flexibilidade de horário e de lugar, garantindo que cuidem de suas famílias e tenham algum ganho financeiro. 

Cabe destacar que a perspectiva de gênero possibilita que compreendamos que se trata de uma escolha, ou seja, estas mulheres são sujeitas ativas nos modos como elegem seus modos de vida, mas que percorrem estas trajetórias dentro de uma condição objetiva de suas realidades. Ou seja, estas escolhas estão circunscritas às possibilidades (por vezes muito limitadas) que a realidade pode oferecer.

Enquanto mulheres pobres, pouco escolarizadas, vivendo em condições pouco ou nada dignas, elas também ocupam lugares subalternizados nos trabalhos ligados ao tráfico de drogas. A divisão sexual do trabalho se reproduz também nesses espaços em que realizam tarefas manuais, de organização, de limpeza e, mais além, quando seus corpos são utilizados como receptáculos para o transporte de drogas. A subalternidade as coloca no lugar da seletividade penal, sendo rapidamente alcançadas pelos sistemas de justiça. Na mesma velocidade, são substituídas na rede do narcotráfico, já que seus trabalhos não são especializados.

Tornar visível as relações entre mulheres e o tráfico de drogas na América Latina significa aprofundar os estudos críticos, com perspectiva de gênero, que permitam trazer à tona a complexa trama de enredos presente nesta temática. Trata-se de um fenômeno multifacetado, que precisa incluir tanto os debates sobre as questões estruturais que atravessam a vida das mulheres, estudos sobre as políticas proibicionistas na região, a dinâmica do narcotráfico, mas também os processos de criminalização e punição deste grupo.

É possível encontrar importantes trabalhos de pesquisadoras latino-americanas nesta área e também localizar as normativas internacionais que já vêm pautando alguns temas sobre mulheres, prisão e crime. Cabe pensarmos uma atuação em rede que gere mais visibilidade tanto para as pesquisadoras, suas pesquisas, quanto para a temática e para as mulheres que podem ser nossas interlocutoras na compreensão desta complexa realidade.

Artículo publicado en el 5to boletín colaborativo de Amassuru

La opinión de la autora no compromete la posición institucional de Amassuru

Foto de shakhorn38 desde Getty Images. Composición LCR.

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Somos una red de mujeres que trabajan temas de Seguridad y Defensa en América Latina y el Caribe (ALC), creada para promover el trabajo de las mujeres en el área, además de facilitar la visibilidad y los espacios de discusión en la región. Juntas, somos mucho más poderosas, por eso creemos que es central crear una red entre nosotras, en un área como la de seguridad, en la cual hemos sido segregadas históricamente. Somos una red independiente y apartidaria de mujeres que trabajamos en diversas áreas, incluyendo la investigación, la docencia, el trabajo directo en políticas públicas y prevención, el periodismo, las ONGs, los gobiernos nacionales y locales, así como en organizaciones internacionales y la academia, entre otras áreas. La red de Amassuru está enfocada en la seguridad en el sentido amplio, englobando temáticas de seguridad ciudadana, seguridad humana, seguridad internacional y justicia.

 

 

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